Resolução 454/2022 do CNJ:
garantia do direito ao acesso ao Judiciário
de pessoas e povos indígenas
A garantia do direito ao acesso ao Judiciário de pessoas e povos indígenas é essencial para a promoção da justiça social e para a efetivação dos direitos fundamentais desses povos, considerando sua singularidade cultural, histórica e territorial. Essa proteção encontra amparo na Constituição Federal, notadamente em seus artigos 231 e 232, bem como na Convenção 169 da OIT e na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007, que reconhecem e asseguram os direitos desses povos, valorizando sua organização social, seus costumes e sua relação intrínseca com a terra.
Os
dispositivos constitucionais e internacionais evidenciam a necessidade de
políticas públicas que rompam as barreiras históricas e culturais que
dificultam o acesso desses povos aos serviços judiciais, em verdadeiro estímulo
ao chamado “letramento em linguagem indigenista”. Instaura-se a necessidade de
consulta prévia, livre e informada, garantindo a participação ativa dos povos e
comunidades tradicionais na formulação, implementação e avaliação de políticas
públicas que os afetem diretamente. Ademais, os instrumentos normativos buscam
o respeito à autoidentificação e à organização social própria, impondo aos
governos a obrigação de salvaguardar os valores culturais, os territórios
tradicionais e as formas de vida dos povos indígenas, impedindo práticas que
possam conduzir à sua assimilação forçada.
Nesse
contexto, a Resolução 454/2022 do CNJ emerge como um marco na inclusão dos
povos indígenas no sistema de Justiça, ao propor medidas que se adaptam à
realidade de cada comunidade. A norma enfatiza o reconhecimento da identidade,
organização social, territorialidade, cosmovisões, costumes e direitos
indígenas, detalhando práticas para garantir a compreensão dos processos legais
(intérpretes, traduções interculturais e perícias antropológicas), inclusive com procedimentos específicos
para citações e intimações. O documento também aborda a proteção de crianças
indígenas e a importância do diálogo intercultural no âmbito judicial.
Entre os
princípios fundamentais dispostos na resolução, destaca-se o da
autoidentificação dos povos indígenas, que garante que sejam os próprios
indígenas a definirem sua identidade e suas reivindicações, fortalecendo a
autonomia e o reconhecimento de sua cultura. Assim, a própria autodeclaração
traz a definição do indígena como pessoa legítima pertencente à determinada
comunidade tradicional, sem, contudo, excluir a titularidade dos direitos
inerentes a todo cidadão brasileiro ou estrangeiro.
Outro pilar é
o incentivo ao diálogo interétnico e intercultural, que promove a comunicação
entre o sistema de Justiça e as comunidades indígenas por meio de interlocução
respeitosa e sensível às diferenças culturais. Tal abordagem contribui para a
construção de soluções jurídicas que atendam às especificidades de cada povo,
integrando saberes e práticas tradicionais na resolução de conflitos.
A
territorialidade indígena também é outro princípio basilar da Resolução
454/2022 do CNJ, reconhecendo que o vínculo com a terra é indissociável da
identidade dos povos indígenas. Essa conexão fortalece a proteção de seus
territórios e, por consequência, assegura condições adequadas para o acesso aos
direitos e à Justiça, resguardando seu modo de vida tradicional.
O
reconhecimento da organização social e das formas próprias de cada povo
indígena para a resolução de conflitos reforça a necessidade de o Judiciário
respeitar e incorporar os saberes e as práticas jurídicas tradicionais. Essa
abordagem possibilita a aplicação de métodos conciliatórios e preventivos que
se alinham com a cultura indígena, promovendo a resolução de conflitos de
maneira mais efetiva e humanizada.
A vedação da
aplicação do regime tutelar é outro aspecto importante, pois impede que os
povos indígenas sejam tratados como incapazes de gerir seus próprios
interesses. Essa vedação reafirma a plena capacidade de autodeterminação e a
autonomia desses povos, sem que sejam submetidos a medidas que desconsiderem
sua complexidade social e cultural, permitindo que tracem seus caminhos de
participação e estabeleçam suas próprias demandas.
Apesar da
vedação da aplicação do regime tutelar aos povos indígenas, o Ministério
Público do Trabalho desempenha papel estratégico na proteção dos direitos e
interesses dos povos originários, das comunidades tradicionais e periféricas,
abrangendo também crianças e adolescentes inseridos nas relações laborais.
Fundamentada no art. 83, inciso V, da Lei Complementar 75/1993, e na Resolução
230/2021 do Conselho Nacional do Ministério Público, tal atuação objetiva não
somente a fiscalização do cumprimento das normas trabalhistas, mas também a promoção
de medidas que assegurem a proteção integral dos direitos fundamentais, bem
como o respeito às peculiaridades culturais e sociais desses grupos
historicamente vulneráveis.
Nessa
perspectiva, colhe-se decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região
(TRT-4), que menciona a Resolução nº 454/2022 do CNJ. No caso, a resolução é
citada em conjunto com o art. 232 da Constituição Federal, a Convenção 169 da
OIT e o art. 279 do CPC, para justificar a declaração de nulidade de um
processo trabalhista envolvendo uma reclamante indígena, devido à ausência de
manifestação do Ministério Público do Trabalho em primeira instância. Eis o
julgado:
NULIDADE DO PROCESSO. RECLAMANTE INDÍGENA. AUSÊNCIA
DE MANIFESTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NO PRIMEIRO GRAU. Caso em que
a reclamante é indígena, com emissão de certidão pela FUNAI. Sendo assim,
impõe-se o reconhecimento da nulidade do processo, em face da ausência de
manifestação e de produção de provas pelo Ministério Público do Trabalho no
primeiro grau. Incidem as disposições do art. 232 da Constituição Federal, da
Convenção 169 da OIT, da Resolução nº 454 do CNJ, bem como do art. 279 do CPC.
(TRT-4, ROT 0020469-53.2020.5.04.0641,
Relator: Gilberto Souza dos Santos, Julgado em 14/08/2023.)
Já o
princípio da autodeterminação dos povos indígenas, sobretudo no que tange aos
povos em isolamento voluntário, consagra o direito soberano de definir suas
próprias trajetórias políticas, econômicas, sociais e culturais, sem imposições
estatais que possam comprometer sua integridade (direito de autogoverno). Impõe
ao poder público a promoção da participação efetiva dos povos indígenas na
formulação de políticas, respeitando suas especificidades e organização social.
Dessa forma, a autodeterminação assegura a preservação de sua identidade
cultural e estabelece o dever do Estado de manter o diálogo interétnico e
intercultural, evitando a imposição de regimes tutelares e práticas
assimilacionistas, e fortalecendo mecanismos que garantam sua plena autonomia.
Como se pode
notar, a Resolução 454/2002 do CNJ reforça o compromisso do Estado com a
proteção integral e diferenciada desses grupos. Assim, o acesso ao Judiciário
se torna uma ferramenta indispensável para assegurar a participação plena dos
povos indígenas na defesa e na promoção de seus direitos, em consonância com o
Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973) e demais normativas nacionais e
internacionais, garantindo que a justiça seja, de fato, acessível, inclusiva e
eficaz.
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OBSERVATÓRIO DE DIREITO SOCIOAMBIENTAL. Direito à autodeterminação dos povos indígenas e tradicionais: resumo infográfico. 2023. Disponível em: <https://observatorio.direitosocioambiental.org/wp-content/uploads/2023/03/direito_a_autodeterminacao_dos_povos_indigenas_e_tradicionais_-_resumo_infografico_-_por_2023.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2025.
TRT-4, ROT 0020469-53.2020.5.04.0641, Relator:
Gilberto Souza dos Santos, Julgado em 14/08/2023.
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