Interesse processual do depoimento pessoal em casos de assédio sexual
Em processo judicial, o depoimento pessoal e o interrogatório são mecanismos procedimentais utilizados para colher os relatos das partes sobre os fatos do litígio, podendo interferir no convencimento do magistrado. É dizer que a marcha processual deve contar com a narrativa dos acontecimentos repassada pelos seus próprios protagonistas, se possível de forma oral para permitir uma aferição mais próxima do judiciário (princípios da oralidade e da imediatidade), com a finalidade de se alcançar uma retrospectiva histórica valorizadora da verdade real.
Cediço que o depoimento pessoal é meio de prova destinado a provocar a confissão do adversário, cabendo a parte requerê-lo logo no início da audiência de instrução e julgamento. A regência legal deste instituto encontra-se catalogada no bojo do Código de Processo Civil (Seção IV, do Capítulo XII), sendo plenamente aplicável à dinâmica processual trabalhista, em razão da omissão legislativa e compatibilidade procedimental (art. 769 da CLT). Dada a sua importância, o indeferimento pelo juiz, sem justificativa robusta e plausível, pode gerar cerceamento de defesa e nulidade processual.
Já o interrogatório livre, previsto no art. 848 da CLT, não é precisamente meio de prova, mas expediente necessário para que o juiz busque esclarecer pontos duvidosos ou obscuros das alegações de cada parte e das provas contidas nos autos. Significa que o juiz, no uso desta “potestade instrutória”, pode determiná-la ex officio e em qualquer momento antes da prolação da sentença. Trata-se da chamada “majoração dos poderes do juiz do trabalho na direção do processo”, conforme diretriz principiológica contida no art. 765 da CLT. De acordo com o entendimento consubstanciado no item III, da Súmula 74, do TST, “a vedação à produção de prova posterior pela parte confessa somente a ela se aplica, não afetando o exercício, pelo magistrado, do poder/dever de conduzir o processo”.
Em regra, o advogado não teria interesse no depoimento pessoal da parte que assiste, inclusive em fazer reperguntas, já que seria uma estratégia prejudicial ao seu cliente, faltando-lhe interesse processual.
Mas existiria alguma exceção ou ao menos algum tipo de interpretação que possibilite a tomada de depoimento pessoal do próprio requerente?
A resposta é positiva e pontual, porém merece certos temperamentos a respeito.
O depoimento pessoal, à luz da base principiológica do processo penal, deve ser entendido também como uma diretriz propositiva do direito fundamental ao contraditório substancial, conforme preconizado no art. 5º, LV, da CF/88. Qualifica-se como ato de defesa a ser exercitado em juízo, personificação corpórea daquilo que foi lavrado nos autos, permitindo a instauração de um processo judicial mais justo, inclusivo e democrático.
Por outro lado, cabe entender o interesse de agir em duas dimensões distintas: utilidade e necessidade. A constatação se dá em concreto, na medida em que a providência judicial tem que resultar em proveito ao demandante (interesse utilidade), bem como se revelar como procedimento inevitável ou solução derradeira (interesse necessidade).
Assim, na maioria dos casos, o requerimento de depoimento pessoal do próprio cliente tende a ser indeferido, justamente pelo fato de não restar caracterizado o interesse processual da medida pretendida, seja por produzir mais prejuízos do que benefícios, seja por existir outros meios aptos a expressar o questionamento da parte.
Entretanto, entendemos que, em demandas que versem sobre assédio sexual, o depoimento pessoal revela-se como fator essencial ao desfecho do litígio. Isso porque tal prática é tipificada como crime contra a dignidade sexual (art. 216-A do CP), demonstrando o interesse social na repressão de tal ilícito. Muitas vezes, há extrema dificuldade na sua comprovação, em razão do caráter insidioso e sorrateiro das ofensas sexistas, sendo o depoimento da própria vítima importante indício no contexto probatório.
Desse modo, em tais crimes, geralmente cometidos às ocultas e sem a presença de testemunhas, são de real valor probatório as declarações e palavras da vítima, mormente se coerentes com as demais provas. À guisa de exemplificação no campo criminal, colhem-se os seguintes arestos:
DIREITO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. IMPORTUNAÇÃO SEXUAL. MATERIALIDADE E AUTORIA CONFIRMADAS. PALAVRA DA VÍTIMA. CONDENAÇÃO MANTIDA. INIMPUTABILIDADE PENAL. EMBRIAGUEZ PATOLÓGICA. IMPROCEDÊNCIA. INCIDENTE DE INSANIDADE NÃO INSTAURADO. DOSIMETRIA DA PENA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1. Nos crimes contra a dignidade sexual, por ocorrerem geralmente às ocultas, sem a presença de testemunhas oculares, a palavra da vítima possui especial relevância, a qual, se harmônica e coesa com as demais provas produzidas, é suficiente para embasar a condenação. 2. Demonstrada a conduta praticada pelo réu nos autos, qual seja, apalpar a vítima e se masturbar na frente dela, a manutenção da condenação pela prática do crime tipificado no art. 215-A do Código Penal é medida que se impõe. 3. A alegação de inimputabilidade ou de semi-imputabilidade resolve-se pelo meio processual adequado, ou seja, pelo incidente de insanidade mental, sendo imprescindível a comprovação de que, no momento da ação, o agente não possuía a plena capacidade ou de que era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. 4. Recurso conhecido e não provido. (Acórdão 1243292, 00082173320188070001, Relator: WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR, Terceira Turma Criminal, data de julgamento: 16/4/2020, publicado no PJe: 24/4/2020)
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. TENTATIVA. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. PLEITO ABSOLUTÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. DEPOIMENTO DA VÍTIMA CORROBORADO POR PROVAS JUDICIAIS. PLEITO DESCLASSIFICATÓRIO PARA O CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL. NÃO ACOLHIMENTO. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. DOSIMETRIA DA PENA NA SEGUNDA FASE. AGRAVANTE GENÉRICA DO ARTIGO 61, INCISO II, ALÍNEA “F”, DO CÓDIGO PENAL. AFASTAMENTO. UTILIZAÇÃO DA CAUSA DE AUMENTO DE PENA RELATIVA À AUTORIDADE QUE O RÉU EXERCE SOBRE A VÍTIMA. ARTIGO 226, INCISO II, DO CÓDIGO PENAL. REDUÇÃO DO VALOR MÍNIMO DA INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. QUANTUM EXACERBADO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Nos crimes contra a dignidade sexual, a palavra da vítima possui inegável valor probatório, desde que em consonância com outros elementos de prova constantes nos autos. Na espécie, os depoimentos da vítima em todas as fases foram harmônicos e coerentes entre si e condizentes com o restante do conjunto probatório, produzido em Juízo, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, ensejando a condenação do réu pelo delito de estupro de vulnerável na modalidade tentada. 2. A Lei nº 13.718, de 24 de setembro 2018, que alterou o Título VI do Capítulo I da Parte Geral do Código Penal, que versa sobre os crimes contra a liberdade sexual e tipificou o delito de importunação sexual (artigo 215-A, do Código Penal), não se aplica ao delito de estupro de vulnerável, descrito no Capítulo II, que trata dos crimes sexuais contra vulnerável, em face do princípio da especialidade. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça 3. A incidência da causa de aumento especial prevista no artigo 226, inciso II, do Código Penal exclui a possibilidade de aplicação da agravante genérica prevista na alínea f, inciso II, artigo 61, Código Penal pelo mesmo fato. 4. De acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, firmado no julgamento dos Recursos Especiais nº 1.643.051/MS e 1.675.874/MS, o Juízo criminal é competente para fixar o valor de reparação mínima a título de danos morais, em processos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, desde que haja pedido expresso na denúncia ou queixa, ainda que não especificada a quantia da indenização e sem necessidade de instrução probatória específica quanto à ocorrência do dano moral. 5. Considerando que a extensão do dano não foi grave, bem como se levando em consideração as condições econômicas do réu e da ofendida, mostra-se razoável a redução do valor mínimo de reparação a título de danos morais para a quantia de R$ 300,00 (trezentos reais). 6. Recurso conhecido e parcialmente provido para, mantida a condenação do réu nas sanções do artigo 217-A, combinado com o artigo 14, inciso II, e artigo 226, inciso II, todos do Código Penal, na forma da Lei nº 11.340/2006, excluir a circunstância agravante descrita no artigo 61, inciso II, alínea “f”, do Código Penal, reduzindo a pena total de 10 (dez) anos de reclusão para 09 (nove) anos de reclusão, mantido o regime inicial fechado de cumprimento de pena e reduzir o valor mínimo de reparação a título de danos morais de R$ 1.000,00 (mil reais) para R$ 300,00 (trezentos reais). (Acórdão 1246116, 00048585120188070009, Relator: ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, Segunda Turma Criminal, data de julgamento: 30/4/2020, publicado no PJe: 14/5/2020)
No que diz respeito às lides trabalhistas, especificamente em demandas que versem sobre assédio sexual, pela peculiaridade do debate referente à violência de gênero, defendemos que a parte reclamante (suposta vítima) teria legitimidade e interesse em requerer a sua própria oitiva, por conta da aplicação do art. 8º, § 1º, da CLT. Ora, o juiz da causa ao permitir a colheita do depoimento pessoal nesses casos, mesmo com a negativa da parte reclamada, agirá em conformidade com a busca da verdade real (art. 765 da CLT), com a instauração de procedimentos mais fidedignos (art. 7º, alíneas “f” e “g” da Convenção de Belém Do Pará, Convenção 190 e Recomendação 206 da OIT) e com as diretrizes do Protocolo do CNJ para Julgamento com Perspectiva de Gênero em todo o Judiciário.
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DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 19. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.
SANTOS, Claiz Maria Pereira Gunça dos; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Convenção 190: violência e assédio no mundo do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte, v. 66, n. 101, p. 53-80, jan./jun. 2020
SCHIAVI, Mauro. Manual de direito processual do trabalho. 12. ed. São Paulo: Ltr, 2017.