O que podemos aprender com Round 6 sobre o liberalismo?*
Muitos já devem ter visto ou ouvido falar da série sul-coreana “Round 6”, que atualmente está no streaming do Netflix. A série é um enorme sucesso, o maior da história da plataforma1.
Também, aqueles que viram a série, bem como muitos que ouviram falar, ficaram sabendo do contexto social que envolve a série. E aqui há muito a ser falado.
O presente artigo não se trata de qualquer análise fílmica, sobre narrativa, direção, fotografia, edição de som etc., mas uma elucubração sobre as alegorias trazidas pela série que podem contribuir para a compreensão do mundo, principalmente pela ótica do liberalismo e sua famigerada meritocracia. Registre-se que essa análise, obviamente, passa pelo filtro deste articulista, com base em suas experiências e cultura, sem embargo de que outros elementos possam ser extraídos da obra, conforme a vivência de cada um, pois a obra é sempre aberta e é uma oportunidade para o desenvolvimento da subjetividade do indivíduo.
A série é rodada na Coreia do Sul, país que tem os melhores indicadores sociais do mundo2, longe da triste realidade dos países subdesenvolvidos, entre eles o Brasil. Mesmo assim, o país oriental vem assistindo a uma onda de desigualdade nos últimos anos3, inclusive, com endividamento familiar que há muito não se via (o que é mostrado no final do último episódio).
Para quem não viu, a série se trata , basicamente, de pessoas que são envolvidas em uma série de jogos, com alto risco de morte para cada participante. Os participantes não são escolhidos aleatoriamente. Pessoas em total desespero financeiro são “convidadas” a participar desse jogo com 6 “rounds” (por isso, o nome da série), cujo vencedor, ao final, receberá uma enorme quantia de dinheiro que lhe transformará em bilionário. A eliminação de cada jogador significa sua morte e, morbidamente, o cofre em forma de porquinho é enchido com dinheiro à medida que cada participante é morto. Isto é, a vida de cada um tem um preço, como na sociedade capitalista, na qual, em que pese o risco da atividade econômica, a família do trabalhador acidentado e morto é juridicamente compensada com uma quantia, enquanto a atividade perigosa da empresa é continuada, pois o rolo compressor do capital não pode parar.
No primeiro episódio, antes de ser convidado, o protagonista da série Seong Gi-Hun encontra um misterioso rapaz, jovem e aparentemente bem-sucedido, que o convida para um jogo infantil, consistente em ver quem, com uma tacada de envelope, consegue virar o envelope do adversário no chão. O rapaz, mais experiente e confiante que o protagonista nesse jogo, propõe uma aposta. Cada vez que alguém virar o envelope, o adversário lhe pagará uma quantia de 100 mil wones. Mesmo sabedor que não tem condições de arcar com a aposta, Gi-Hun aceita, pois não tem nada a perder, uma vez que já é devedor de grande quantia na praça. O jovem rapaz é o primeiro a virar o envelope. Porém, nosso protagonista não tem um tostão para lhe pagar. Mas isso não é problema. O jovem então propõe que, em vez do dinheiro, o protagonista lhe ofereça a face para uma bofetada. Isso mesmo, a integridade física pelo dinheiro. E assim acontece múltiplas vezes até que nosso protagonista, depois de muito apanhar, consegue, finalmente, virar o envelope. Prestes a dar uma bofetada no jovem rapaz, esse lhe lembra que a aposta original envolvia dinheiro e mostra notas ao nosso protagonista que, desesperado, revê sua posição de miséria e cai na realidade de que precisa desesperadamente daquele dinheiro.
Bem, o protagonista recebe um convite para participar do jogo, o que acaba acontecendo posteriormente.
A série explicita uma premissa clássica do liberalismo. O chamado “contrato entre iguais”. Na entrada inicial para o jogo, cada participante assina um documento no qual consente em participar do jogo, sendo de sua responsabilidade o destino que levar. Podemos extrair uma crítica sutil ao contrato de emprego, no qual o trabalhador necessitado assina, sem pestanejar, um contrato que pode lhe custar sua saúde, em troca de um salário nem sempre digno, para sustentar sua família. Existe liberdade contratual ampla, de fato, quando o que busca o trabalhador é a sua sobrevivência, principalmente em épocas de grande desemprego? A liberdade contratual no liberalismo é, portanto, uma ficção jurídica para exploração4.
Após o primeiro round do torneio, com base em uma cláusula do jogo, as pessoas que sobreviveram, exaustas e ensanguentadas pelos respingos do fuzilamento dos perdedores, resolvem, por maioria apertada, por fim ao jogo e voltarem às suas vidas normais. Contudo, a volta à realidade é sofrida, pois logo vem à tona as dívidas e problemas familiares e pessoais advindos da crise que passam. São “convidadas” novamente e boa parte daqueles que saíram acabam retornando ao jogo (inclusive, pessoas que votaram para sair, tamanho o desespero que voltaram a viver). Ora, impossível não vir à mente a realidade dos trabalhadores desempregados neste país que não veem outra opção senão vender sua força de trabalho para “empresas de aplicativo” que apostam, justamente, no desemprego da população, para arbitrar o preço e condições que quiserem, com base em algoritmos, ofertando contrato precário, sem as garantias do Direito do Trabalho previsto na Constituição da República e leis federais.
Em outra passagem interessante da série, o jogador Byeong-gi, que é médico e em troca de receber informações privilegiadas do jogo, coopera clandestinamente com os funcionários para a extração de órgãos dos jogadores mortos. Após descobrir a trama, o chamado “líder” do jogo adverte que não se importa que ele se aproveite da venda de órgãos, mas que ele teria ferido a regra mais importante do jogo, qual seja, a igualdade, pois se aproveitaria de informações que os outros jogadores não teriam. Isso leva Byeong-gi a ser morto. Para o líder, essa igualdade é essencial para manter a integridade do sistema. Isto é, a ficção igualitária acima da vida das pessoas. Além de ser uma alfinetada (mais uma) na ideia liberal de igualdade formal, há também crítica à ideia meritocrata de que vivemos em uma sociedade igual e que as conquistas pessoais estão na alçada de todos individualmente. Pelo contrário, a série nos mostra que, nos jogos, há pessoas de níveis físicos e educacionais distintos. Assim, alguns desses atributos inerentes a pessoa são usados para destruir o adversário, em uma “lei do mais forte”. Em muitas vezes, as pessoas “mais fracas” são rechaçadas na formação de alguns grupos, para não atrapalharem na execução de cada “round” daquele jogo. A meritocracia é o fetiche liberal para justificar que todos conseguem um lugar no olimpo se se esforçarem bastante.
Ademais, falando de meritocracia, impossível também não se lembrar da “sociedade do cansaço” descrita pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, o qual nos diz que estamos em um período da história em que os seres humanos entendem que tudo pode ser superado pela vontade. Por isso o excesso de positividade vista nas redes sociais, as quais tentam demonstrar que com esforço tudo é possível, esquecendo dos problemas sociais que afetam alguns. Entretanto, ao final, só restaria o ser humano já consumado ou, pegando um “link” com a série, morto5.
A série é rica em outros temas, como o machismo. Mostra-se uma Coreia do Sul, embora avançada economicamente, mas ainda discriminatória em relação a mulheres, com cenas que beiram a misoginia explícita, como no caso do jogo do “cabo de guerra”, em que são refutadas pelo menor atributo físico. Até porque, frise-se, o progresso econômico nem sempre é acompanhado pelo progresso social.
Mostra-se, ainda, o problema da imigração, com a participação no jogo de um simpático imigrante paquistanês, que sofre preconceito no decorrer dos rounds e, em função de sua inocência, ainda é enganado ao final pelo suposto amigo que trabalhava no mercado financeiro coreano.
Portanto, a série contém várias alegorias sobre o ideal liberal e sua igualdade formal que coloca boa parte da população em situação de desespero, buscando o que comer em troca de vender sua força de trabalho em condições precárias.
“Round 6” é isso, a catarse dos ricos (e como isso é mostrado na série!) às custas do povo pobre e trabalhador que, desesperadamente, logra em participar do jogo liberal para “serem algo” que o capitalismo exige que sejam, isto é, pessoas de sucesso ou, ainda, apenas para sobreviverem. Mas esse jogo pode custar caro, talvez sua integridade física ou a vida.
* Texto de autoria do Dr. Geraldo Furtado de Araújo Neto. Atualmente é Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.
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1 https://diariodamanha.com/noticias/round-6-se-torna-a-serie-mais-vista-da-historia-da-netflix/
2 https://www.oecdbetterlifeindex.org/pt/paises/coreia,do,sul/
3 Idem
4 PACHUKANIS, E.B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tradução de Silvio Donizete Chagas. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988, p.84
5 HAN, Byung-Chul. . Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 20-30
E a ênfase na violência (do sistema).
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