Aspectos
constitucionais relativos à primazia do acordo individual escrito em
tempos de pandemia da COVID-19
Em
meio a emergência de saúde pública de importância internacional
decorrente do coronavírus (covid-19), com estado de calamidade
pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março
de 2020, a Presidência da República, principalmente por meio da
edição das Medidas Provisórias 905/2020, 927/2020, 928/2020,
936/2020, 944/2020, 945/2020 e 946/2020, procurou estabelecer medidas
trabalhistas mínimas para a manutenção do emprego e da renda.
Uma
das providências mais polêmicas, tanto na MP 927/2020 quanto na MP
936/2020 (Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da
Renda), é justamente aquela que versa sobre a possibilidade de
entabulação de acordos individuais nos contratos de trabalho em
vigor, conferindo a preponderância destes sobre os demais
instrumentos normativos, legais e negociais, inclusive no que diz
respeito à redução proporcional de jornada de trabalho e de
salários, bem como à suspensão temporária da pactuação.
Em
tempos de crises institucionais, sobretudo quando originada de grave
propagação de doença com índices alarmantes de mortalidade, o
intérprete deve verificar a dinâmica laboral sob uma ótica
diferenciada, admitindo certa ponderação temporária de garantias
constitucionais para proteger o substrato do Direito do Trabalho
Clássico, qual seja, o vínculo empregatício. A respeito do chamado
Direito do Trabalho de emergência, digno de nota é o entendimento
de Lyon-Caen, Pélisser e Supiot, que, de forma sintética, aduzem
que “o Direito do Trabalho não protege: ele produz um ‘equilíbrio
instável’ entre interesses antagônicos. Em um período de crise,
protege mais a empresa que é a fonte do emprego” (LYON-CAEN,
Gérard; PÉLISSIER, Jean; SUPIOT, Alain. Droit du travail. 17ª ed.
Paris: Salloz, 1994, p. 33).
A
situação de pandemia ora vivenciada assemelha-se em muito a um
típico Estado de Exceção, mais precisamente a um Estado de Defesa
(art. 136 da CF/88), ocasionado por guerra, insurreição ou
calamidade, em que se permite certos contingenciamentos a
prerrogativas individuais em prol do restabelecimento do bem-estar
social. É dizer que, neste cenário trazido pelo coronavírus,
lida-se com questões complexas e difíceis que exigem sopesamento e
balanceamento de garantias constitucionais contrapostas para alcançar
uma síntese democrática e de valorização da própria vida.
Ora,
a necessária imposição de mecanismos de enfrentamento da
contaminação (isolamento social e quarentena), com o viés precípuo
de evitar aglomerações e alastramento, interferem substancialmente
no funcionamento do comércio, sobrevalorizando a saúde da população
(arts. 6º e 196 da CF/88) em detrimento da livre iniciativa (art.
1º, inc. IV, da CF/88). Utiliza-se também aqui a chamada cláusula
constitucional da solidariedade (art. 3º, inc. I, da CF/88) como
instrumento apto de identificação e apaziguamento sociais.
Diante
da desaceleração econômica, o empresariado, principalmente as
micro e pequenas empresas, encontram-se em situação demasiadamente
crítica e inesperada, com queda no fluxo de caixa para a quitação
de salários e tributos, instaurando um ciclo vicioso de aniquilação
da renda e do consumo. Apesar disso, a parte da população que mais
sofre com restrições desta magnitude é, sem qualquer laivo de
dúvidas, o chamado exército industrial de reserva, composto de uma
grande massa de desempregados, trabalhadores informais e
pseudo-autônomos.
Agora,
no que tange aos empregados formais, a providência mais válida e
legítima seria vedar toda e qualquer dispensa imotivada ou
arbitrária (denúncia vazia do contrato), ressalvados os pedidos de
demissão e rescisão por justa causa, por determinado lapso temporal
(60 ou 90 dias), ou, pelo menos, até que as medidas de contenção
da pandemia não se mostrassem mais úteis, em atenção à eficácia
irradiante da diretriz fundamental preconizada no art. 7º, inc. I,
da CF/88 e na Convenção 158 da OIT (Término da Relação de
Trabalho por Iniciativa do Empregador). Nesse mesmo sentido, tem-se o
recente posicionamento da OIT (Las normas de la OIT y el
COVID-19).
Como
as restrições das dispensas foram feitas somente em determinadas
situações (por exemplo: adesão das empresas às linhas de crédito
previstas na MP 944/2020), privilegiou-se a tratativa negocial prévia
pelos próprios partícipes da relação de trabalho (empregado e
patrão), desde que respeitados os estritos parâmetros legais, tudo
com a finalidade de se manter a renda advinda da pactuação laboral
e evitar sobremaneira aglomerações e respostas tardias por parte
dos entes sindicais. Cuida-se de estratégia governamental não
infensa a críticas e dificuldades de compatibilização teórica com
o princípio tuitivo (assincronia clássica), mas que procura, de
maneira razoável, operacionalizar na prática a continuidade da
relação de emprego.
Calha
mencionar que os sindicatos profissionais não foram alijados do
diálogo trabalhista neste período de calamidade pública, já que o
próprio legislador, malgrado a postura acanhada contida na norma
(art. 11, § 4º, da MP 936/2020), instaurou a comunicação
obrigatória do ente coletivo, como requisito de validade material da
redução de jornada e do salário, verdadeira condição resolutiva
(incidência de efeitos imediatos), com a consequente preservação
do núcleo essencial da autonomia negocial coletiva (art. 7º, incs.
VI, XIII e XXVI, da CF/88).
Não
obstante, algumas categorias profissionais são compostas de milhares
de empregados e outras sequer são organizadas por uma estrutura
sindical básica, dificultando a comunicação rápida e efetiva dos
representados, mesmo que de forma telepresencial. Isso não significa
que o sindicato não possa participar da negociação individual, mas
sim que o seu papel será de incremento do estuário normativo e de
fiscalizador nato do cumprimento das cláusulas contratuais.
Lado
outro, o legislador demonstrou notável perspicácia ao primar pela
preservação do emprego e da renda, antes mesmo da continuidade da
atividade empresarial. A força motriz do trabalho se expõe com toda
sua expressividade nesta economia globalizada, assumindo o seu
protagonismo na solução da crise financeira. Não é à toa que se
optou pela redução proporcional da jornada de trabalho previamente
ao abatimento do salário, mantido seu valor-hora e percepção de
Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda. Isso
porque a própria Constituição Federal, diferentemente do que fez
em seu art. 7º, inc. VI, trata, no art. 7º, inc. XIII, apenas de
“acordo” (expressão que não é seguida de coletivo) ou
“convenção coletiva” ao se referir à compensação de horários
e redução de jornada de trabalho, possibilitando a negociação
individual para estas hipóteses.
À
luz da precaução que demanda o combate ao coronavírus, a tomada de
decisão nas questões laborais deve obedecer o enfoque axiológico
dos princípios da necessidade e da temporariedade, isto é, o acordo
individual é diligência extrema, mas simplificada diante da
urgência de mitigação da contaminação voluntária, logicamente
desde que observado determinado lapso temporal. Havendo a constatação
de abuso patronal na composição do acordo individual, seja na
ausência de concessões recíprocas, seja no descumprimento dos
limites impostos na legislação, seja no elastecimento ilícito das
medidas paliativas, seja na simulação de crise financeira, seja na
fraude da paralisação de atividades não essenciais, seja na falta
de comunicação da avença individual ao Ministério da Economia e
ao sindicato da categoria profissional, resultará fatalmente em
invalidade do negócio jurídico com o pagamento daquilo que se
deixou de recolher, cabendo inclusive indenização por dano
extrapatrimonial em favor do obreiro porventura lesionado.
Enfim,
o certo é que o debate aqui proposto se refere a institutos caros ao
Direito do Trabalho e que reverberam acalorados debates, mas que
merece uma resposta contundente, transitória e imediata em prol do
bem-estar populacional. Assim, com o devido respeito e acatamento das
opiniões em sentido contrário, entendo que a primazia do acordo
individual escrito em tempos de pandemia da COVID-19 é
constitucional, sobretudo de acordo com o postulado da
proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em
sentido estrito) e da presunção de constitucionalidade dos atos
normativos em geral, contanto que se utilize de uma interpretação
conforme a Constituição para oportunizar a intervenção sindical
fiscalizatória, independentemente de qualquer custo financeiro,
mesmo que de forma posterior. Neste agir, o intérprete emergencial
promoverá, em última instância e com as devidas ponderações, os
valores maiores da dignidade da pessoa humana (vertente coletiva),
dos valores sociais do trabalho, da busca pelo pleno emprego e do
trabalho decente (direitos fundamentais, diálogo social, proteção
social e emprego produtivo).
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