MP
927/2020: COVID-19 e relações de trabalho
O
Direito do Trabalho é ramo do direito relacionado à atividade
econômica, possuindo dinamismo muito mais elevado que os demais
ramos, motivo pelo qual existem tantos debates diante das
consequências da pandemia decorrente do COVID-19 nos contratos de
trabalho. Ademais, o modo de regulações das relações de trabalho
depende muito do modelo econômico adotado.
A
situação é nova para nós brasileiros e exigirá um esforço
hermenêutico dos operadores do direito pátrio para este momento de
instabilidade social e econômica, levando-se em consideração que a
atividade do intérprete jurídico possui caráter político, porém
a racionalidade e previsibilidade das decisões são requisitos
necessários para a caracterização de sua legitimidade perante a
sociedade. Deste modo, as interpretações deverão seguir critérios
racionais e técnicos, evitando subjetivismos e apelos exacerbados ao
princípio da dignidade humana. Neste momento se mostrará válida a
aplicação atenta e coerente das doutrinas de Ronald Dworkin
("romance em cadeia"), Robert Alexy ("Ponderação de
princípios"), de Neil MacCormick e outros estudiosos da
interpretação jurídica.
Mostra-se
relevante neste momento a importância do conhecimento da teoria
geral do direito e a eficácia e vigência dos atos normativos.
Muitas vezes temos uma coletiva de imprensa, inúmeras declarações,
a opinião da população e até de agentes públicos, notícias
sendo divulgadas e relativa eficácia social diante do conhecimento
da população. Porém, tudo isso vem ocorrendo antes da elaboração
e publicação do ato normativo, como no caso desta MP 927/2020 que
foi comunicada antes de sua edição e publicação e trouxe menos
pontos do que havia sido prometido.
De
toda sorte, em momento de tanta insegurança institucional, a
segurança jurídica seria um importante aliado de toda a sociedade,
ressaltando deste modo a relevância de parâmetros como os
fundamentos de validade em norma hierarquicamente superior definidos
pela doutrina de Hans Kelsen, ressaltando a importância que referido
autor atribui a valores como moral e justiça no momento de aplicação
da norma, o que muitas vezes é esquecido por seus críticos.
Após
inúmeras declarações das autoridades públicas de saúde e da área
econômica, ontem (dia 22/03/2020) foi publicada a MP 927/2020 que
dispõe sobre as medidas trabalhistas que poderão ser adotadas pelos
empregadores para preservação do emprego e da renda e para
enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo
Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência
de saúde pública de importância internacional decorrente do
coronavírus (covid-19), decretada pelo Ministro de Estado da Saúde,
em 3 de fevereiro de 2020, nos termos do disposto na Lei nº 13.979,
de 6 de fevereiro de 2020.
Neste
post trataremos dos pontos principais da MP 927/2020 sem o
esgotamento dos temas, dando ênfase aos seus primeiros dispositivos,
ressaltando que é essencial a leitura da Medida Provisória e que já
existem inúmeros vídeos e até “tabelas esquematizadas” a
respeito, motivo pelo qual optamos por uma abordagem um pouco
diferenciada.
É
extremamente relevante que a presente pandemia foi reconhecida como
hipótese de força maior prevista no art. 501 da CLT, nos termos do
art. 1º, parágrafo único da MP 927/202.
Independentemente
da concordância política a respeito do tema, se mostra
juridicamente relevante tal caracterização, pois termos legais
“abertos” como caso fortuito e força maior sempre geram debates,
e diante da regulação não há dúvidas sobre a caracterização
desta pandemia como “força maior” para fins trabalhistas.
Esta
caracterização atrai a aplicação de todo o capítulo VII, do
Título IV da CLT, ou seja, a hipótese diferenciada de extinção do
contrato de trabalho nos termos do art. 502, ressaltando que se trata
de hipótese especial de término do contrato de trabalho decorrente
de extinção da empresa ou do estabelecimento empresarial, conforme
podemos identificar abaixo:
Art.
502 - Ocorrendo motivo de força maior que determine a extinção da
empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado, é
assegurada a este, quando despedido, uma indenização na forma
seguinte:
I
- sendo estável, nos termos dos arts. 477 e 478;
II
- não tendo direito à estabilidade, metade da que seria devida em
caso de rescisão sem justa causa;
III
- havendo contrato por prazo determinado, aquela a que se refere o
art. 479 desta Lei, reduzida igualmente à metade.
Relevante
ainda mencionar o art. 503 que traz em seu bojo a possibilidade de
redução salarial em até 25%.
Entende-se
que tal dispositivo não foi recepcionado pela Constituição de 1988
diante do conteúdo do art. 7º, XXVI da Constituição Federal, que
apenas permite a redução salarial na hipótese de negociação
coletiva.
Entretanto,
o art. 2º da MP 927/2020 traz importante parâmetro hermenêutico:
Art.
2º Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art.
1º, o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual
escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício,
que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos,
legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na
Constituição.
De
acordo com referido dispositivo, diante da situação de calamidade
decretada o acordo individual escrito terá preponderância sobre as
normas legais e coletivas, devendo serem respeitados os limites
estabelecidos na Constituição.
O
dispositivo em comento modifica a lógica jurídica que
historicamente norteia a interpretação do Direito do Trabalho, que
é a condição de desigualdade material entre as partes, que
fundamenta outros princípios identificados pela doutrina como por
exemplo, o “princípio da proteção” descrito por Américo Plá
Rodriguez. Consequentemente teríamos a necessidade da presença de
um ente coletivo, o sindicato para negociar com o empregador. Mas
tivemos uma inversão prevalecendo a negociação individual sobre a
coletiva.
O
art. 2º ganha ainda mais relevância diante do conteúdo
exemplificativo do art. 3º que traz as medidas que poderão ser
adotadas pelos empregadores, mas deixa claro que outras também
poderão ser tomadas para “preservação do emprego e da renda”.
Relevante
adiantar que contrariamente ao que vinha sendo noticiado na semana
passada (http://trabalho.gov.br/component/content/article?id=7368),
não houve expressa previsão da redução de jornada e de salário,
o que seria importante para diminuir eventuais dúvidas. Tal fato
também chamou a atenção do Presidente da Câmara dos Deputados , o
Deputado Federal Rodrigo Maia, que em vídeo postado em rede social
afirmou estar procurando referida regulação que se mostrava um dos
mais relevantes.
Todavia,
nos termos do art. 58-A, §§ 1º e 2º da CLT, na hipótese de
trabalho em regime de tempo parcial é possível o pagamento de
salário proporcional ao dos trabalhadores que se ativam em tempo
integral. Além disso, os trabalhadores que se ativam em tempo
integral, poderão se ativar em tempo parcial mediante “opção
manifestada perante a empresa, na forma prevista em instrumento
decorrente de negociação coletiva”.
Diante
da ausência de regulamentação, poderia ser ventilada a aplicação
do art. 2º e a desnecessidade de norma coletiva prevendo a expressa
manifestação.
Importante
salientar que tramita na Câmara dos Deputados o PL 699/2020 que
prevê alteração na CLT para possibilitar expressamente a redução
de salário e jornada no caso de enfrentamento de emergências de
saúde pública e calamidades.
Ainda
que sem fonte formal, pensamos que o governo identificou zona muito
nebulosa e por isso preferiu não regulamentar o tema por intermédio
de Medida Provisória, deixando a cargo do Congresso Nacional ou até
mesmo para que as partes regulem em seus contratos privados, deixando
a interpretação a cargo do judiciário.
O
artigo 3º traz as medidas que podem ser adotadas, mas como já
salientado não são taxativas:
Art.
3º Para enfrentamento dos efeitos econômicos decorrentes do estado
de calamidade pública e para preservação do emprego e da renda,
poderão ser adotadas pelos empregadores, dentre outras, as seguintes
medidas:
I
- o teletrabalho;
II
- a antecipação de férias individuais;
III
- a concessão de férias coletivas;
IV
- o aproveitamento e a antecipação de feriados;
V
- o banco de horas;
VI
- a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde
no trabalho;
VII
- o direcionamento do trabalhador para qualificação; e
VIII
- o diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço - FGTS.
Em
alguns pontos existe mera repetição das normas já existentes,
motivo pelo qual focaremos principalmente nas alterações diante do
ordenamento jurídico anterior.
Com
relação ao teletrabalho, este é regulado pelos artigos 75-A ao
75-E da CLT. A MP 927 regulou nos artigos 4º e 5º.
Foram
diminuídas as formalidades para adoção do regime de teletrabalho,
não sendo mais necessária a anotação no contrato de trabalho como
era previsto no art. 75-C da CLT.
Além
disso, pode ocorrer a alteração do regime presencial para o
teletrabalho e vice-versa sem a necessidade de concordância do
trabalhador. Entretanto, é importante ressaltar que é necessária
uma prévia comunicação ao empregado com antecedência mínima de
48 horas, ressaltando que anteriormente o prazo mínimo era de quinze
dias.
Houve
um detalhamento maior na Medida Provisória quanto aos equipamentos
utilizados pelo trabalhador, devendo constar de contrato escrito a
ser firmado no prazo de 30 dias.
Merece
destaque o art. 4º, §4º, II da MP 927/2020:
§
4º Na hipótese de o empregado não possuir os equipamentos
tecnológicos e a infraestrutura necessária e adequada à prestação
do teletrabalho, do trabalho remoto ou do trabalho a distância:
I
- o empregador poderá fornecer os equipamentos em regime de comodato
e pagar por serviços de infraestrutura, que não caracterizarão
verba de natureza salarial; ou
II
- na impossibilidade do oferecimento do regime de comodato de que
trata o inciso I, o período da jornada normal de trabalho será
computado como tempo de trabalho à disposição do empregador.
O
diferencial do teletrabalho é a inexistência de controle de jornada
nos termos do art. 62, III da CLT. Entretanto, conforme o inciso II
acima, caso o empregador não forneça os equipamentos necessários,
a jornada normal de trabalho será computada como tempo à
disposição. Cremos que nesta hipótese o empregador deverá seguir
os trâmites normais de controle e limitação de jornada previstos
na CLT, existindo a possibilidade de pagamento de horas extras.
Porém,
a mera troca de mensagens por aplicativos ou por rede social não
caracteriza horas extras, conforme o parágrafo 5º do mesmo
dispositivo.
Por
fim, o teletrabalho passou a ser expressamente permitido para
aprendizes e estagiários.
No
tocante às férias, reguladas do art. 6º ao 10, a MP 927/2020
modificou principalmente o prazo de comunicação para no mínimo 48
horas. Além disso, o terço constitucional de férias poderá ser
pago posteriormente.
Cabe
destacar que poderá ocorrer a suspensão das férias dos
trabalhadores da área de saúde ou em funções essenciais, bem como
o pagamento das férias poderá ser realizado até o quinto dia útil
do mês subsequente ao início do gozo das férias não sendo
aplicável o disposto no art. 145 da CLT. Além disso, os empregados
considerados como parte do grupo de risco terão preferência para
concessão das férias.
Com
relação às férias coletivas, apenas foi dispensada a comunicação
prévia ao órgão local do Ministério da Economia.
A
lei previu em seu capítulo V o “Aproveitamento e a antecipação
de feriados”. Em suma, poderão considerados os feriados não
religiosos e poderão ser compensados com saldo do banco de horas. É
exigida a comunicação formal do empregador com antecedência de 48
horas com indicação expressa dos feriados a serem antecipados.
Com
relação ao banco de horas previsto no art. 59, §2º e 4º da CLT,
a MP, em seu art. 14 dispensou a necessidade de concordância do
empregado, ou de previsão em norma coletiva ou acordo individual,
além disso a compensação foi estendida para o prazo de dezoito
meses.
No
art. 15 temos a suspensão de exigência administrativas em segurança
e saúde do trabalho. Em resumo, foram dispensados os exames
admissionais e periódicos. Já o exame demissional poderá ser
dispensado caso o exame ocupacional tenha sido realizado há menos de
cento e oitenta e dias.
Durante
o período de calamidade pública também ficam suspensos os
treinamentos previstos em normas de higiene e segurança, além disso
os mandatos dos membros das comissões internas de prevenção a
acidentes ficam prorrogados até o final do período de calamidade.
Sem
dúvida o ponto mais polêmico é o “lay off” previsto no art. 18
que possibilita a suspensão do contrato de trabalho por até quatro
meses, para qualificação do trabalhador, sendo facultado o
pagamento de bolsa pelo empregador sem caráter salarial. A MP traz
menos formalidades que aquelas previstas no art. 476-A da CLT.
Entendeu-se
predominantemente que a medida poderia gerar o caos e aumentar as
chances de colapso social e não apenas do sistema de saúde.
De
toda sorte, na tarde do dia 23 de março de 2020 o Presidente da
República publicou em rede social sua intenção de revogar o
dispositivo, diante das inúmeras críticas recebidas de
parlamentares e de órgãos e entidades ligadas que atuam diretamente
com o Direito do Trabalho.
Em
que pese o sentimento geral de revogação, não é assim tão
simples. Ele deverá publicar nova Medida Provisória para isso.
Porém as duas medidas provisórias deverão ser apreciadas pelo
Congresso Nacional. Não se revoga um ato normativo com uma
“twitada”.
Em
decorrência deste fato, acabou de ser publicada a MP 928/2020, na
qual consta em seu art. 2º a revogação do art. 18 da MP 927/2020.
Do
art. 19 ao 25 a MP regula a possibilidade de suspensão do pagamento
do FGTS pelas empresas referentes aos meses de março, abril e maio
de 2020, bem como o parcelamento de seu pagamento.
No
capítulo X “Outras disposições em matéria trabalhista”,
merecem destaque os artigos. 26 e 27 que tratam da excepcionalidade
da jornada dos profissionais da área de saúde:
Art.
26. Durante o de estado de calamidade pública a que se refere o art.
1º, é permitido aos estabelecimentos de saúde, mediante acordo
individual escrito, mesmo para as atividades insalubres e para a
jornada de doze horas de trabalho por trinta e seis horas de
descanso:
I
- prorrogar a jornada de trabalho, nos termos do disposto no art. 61
da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº
5.452, de 1943; e
II
- adotar escalas de horas suplementares entre a décima terceira e a
vigésima quarta hora do intervalo interjornada, sem que haja
penalidade administrativa, garantido o repouso semanal remunerado nos
termos do disposto no art. 67 da Consolidação das Leis do Trabalho,
aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943.
Art.
27. As horas suplementares computadas em decorrência da adoção das
medidas previstas nos incisos I e II do caput do art. 26 poderão ser
compensadas, no prazo de dezoito meses, contado da data de
encerramento do estado de calamidade pública, por meio de banco de
horas ou remuneradas como hora extra.
Além
disso, houve a suspensão dos prazos para interposição de recursos
administrativos na esfera trabalhista, bem como houve limitações na
atuação dos auditores fiscais do trabalho que atuarão
predominantemente de forma “orientadora”.
Relevante
ainda o texto do art. 29 que define como não ocupacional a
contaminação pelo COVID -19.
Cabe
observar que a presente Medida Provisória tratou apenas de aspectos
trabalhistas, mas poderia ter realizado tratamento diferenciado entre
pequenas, médias e grandes empresas, bem como a possibilidade de
concessão de outros benefícios a título dos recolhimentos fiscais
e previdenciários incidentes sobre as verbas trabalhistas pagas.
Espera-se
que existam medidas de contrapartida pelo Poder Público como aquelas
adotadas pelo próprio governo americano que adota o modelo econômico
norteador de nossas atuais políticas econômicas.
No
tocante à interpretação desta e de outros atos normativos, não
pretendemos demonstrar nosso posicionamento que poderá ser provocado
em breve mediante o ajuizamento de ações judiciais nas varas do
trabalho em que atuamos, todavia é de se presumir que existirão
posições extremadas defendo a inconstitucionalidade de tudo, bem
como outras prevendo a constitucionalidade e validade de todas diante
da situação de exceção. O caminho será o meio termo entre estas,
que provavelmente desagradará ambos os lados.
*Glauco
Bresciani Silva - Juiz do Trabalho do TRT da 2ª Região. Docente da
Escola Judicial do TRT da 2ª Região. Especialista em Filosofia do
Direito pela PUC/MG. Harvard University Certificate in Course
Justice. Professor do Curso "Preparo Jurídico".
Colaborador do site http://www.direitoteoriaepratica.com.br.
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