Acordos
trabalhistas e a natureza das verbas nos termos do art. 832 da CLT
(Lei 13.876/2019)
Foi publicada no dia
23.09.2019 a Lei 13.876/2019 que trouxe grande impacto na prática
judiciária trabalhista. Referida lei inseriu os parágrafos 3º A e
3º B, no art. 832 da CLT que trazem disposições a respeito da
natureza das verbas trabalhistas definidas em sentenças cognitivas
ou homologatórias de acordo.
Em decorrência do impacto
social e econômico dos novos dispositivos inúmeras opiniões vêm
sendo emitidas a respeito da interpretação a ser aplicada a norma.
Focaremos neste post apenas na possibilidade ou não de
discriminação exclusivamente com verbas de caráter indenizatório
nos acordos judiciais homologados antes da prolação de sentença de
primeiro grau.
Para análise do dispositivo
aplicaremos em parte a teoria do professor escocês Neil MacCormick a
respeito de argumentação jurídica tratada em sua obra
“Argumentação jurídica e interpretação do direito”.
Adiantamos que em pese sua
teoria ter sido elaborada em um ambiente jurídico de Common Law,
em sua obra o autor ressalta a possibilidade de aplicação da teoria
ao regime francês de Civil Law, motivo pelo qual achamos
perfeitamente aplicável ao ordenamento jurídico pátrio.
Para o autor escocês a norma
pode ser aplicada por simples dedução, de acordo com o raciocínio
silogístico de Aristóteles (se p, então se aplica q). Mas este
tipo de aplicação está restrita às hipóteses mais simples do
cotidiano jurídico. Para outras situações menciona a existência
da necessidade da justificativa não dedutiva.
Neil MacCormick cita problemas
que impedem a mera aplicação dedutiva da norma, identificando o
problema de interpretação e o problema de pertinência.
Estaríamos diante de um
problema de interpretação quando uma norma tem sua redação dúbia
ou obscura, ao passo que teríamos um problema de pertinência quando
não existe norma aplicável ao caso concreto.
Resta evidente que no presente
caso estamos diante de problema de interpretação.
Em situações como esta temos
a possibilidade de escolha de decisões rivais. No presente caso
pode-se interpretar as normas contidas no art. 832 §§´s 3ºA e 3ºB
como uma restrição total à homologação de acordos com
discriminação da totalidade das verbas de natureza indenizatória
ou na permissibilidade de tal prática.
A relevância é enorme, pois
os juízos decididos resultarão em um modelo de conduta de toda a
sociedade. De acordo com MacCormick para reforçar a tomada de uma
alternativa viável e verdadeira para a sociedade são utilizados
requisitos como: argumentação consequencialista; argumentação a
partir da coerência; e argumentação a partir da coesão.
O magistrado deve estar
consciente das consequências de sua decisão para a sociedade o que
aplica a interpretação consequencialista.
Quanto à coerência, a
interpretação deve fazer sentido no mundo fático e quanto à
coesão, a interpretação deve estar de acordo com o sistema
jurídico, não criando colisão com outras normas já vigentes.
Mais especificamente quanto à
nova legislação trabalhista, nesta última semana estamos
encontrando interpretações que aplicam principalmente as
argumentações consequencialista, na medida em que a vedação à
discriminação total das verbas de natureza indenizatória
aumentaria a arrecadação dos cofres públicos o que também seria
um argumento de coerência, porquanto faria sentido de acordo com o
novo modo de “visão de mundo” aplicado atualmente, diante da
adoção de modelo econômico predominantemente liberal do ponto de
vista econômico.
Entretanto, não vem sendo
encontrada uma argumentação aliada a coesão de todo o sistema
jurídico.
Em que pese a insuficiência
dos métodos clássicos de interpretação elucidados por Savigny
(histórico, sistemático e gramatical) estes servem de início para
qualquer análise e interpretação legislativa.
Vejamos a redação dos
parágrafos inseridos no art. 832 da CLT pela Lei 13.867/2019 abaixo
(inserimos o parágrafo 3º, pois os novos dispositivos fazem
referência expressa a este):
§ 3o As decisões cognitivas
ou homologatórias deverão sempre indicar a natureza jurídica das
parcelas constantes da condenação ou do acordo homologado,
inclusive o limite de responsabilidade de cada parte pelo
recolhimento da contribuição previdenciária, se for o caso.
§ 3º-A. Para os fins do §
3º deste artigo, salvo na hipótese de o pedido da ação limitar-se
expressamente ao reconhecimento de verbas de natureza exclusivamente
indenizatória, a parcela referente às verbas de natureza
remuneratória não poderá ter como base de cálculo valor inferior:
I - ao salário-mínimo, para
as competências que integram o vínculo empregatício reconhecido na
decisão cognitiva ou homologatória; ou
II - à diferença entre a
remuneração reconhecida como devida na decisão cognitiva ou
homologatória e a efetivamente paga pelo empregador, cujo valor
total referente a cada competência não será inferior ao
salário-mínimo.
§ 3º-B Caso haja piso
salarial da categoria definido por acordo ou convenção coletiva de
trabalho, o seu valor deverá ser utilizado como base de cálculo
para os fins do § 3º-A deste artigo.
Utilizando inicialmente o
método gramatical, verifica-se que o legislador optou no “§3º A”
por iniciar a norma pela exceção, fato que prejudicou na clareza do
enunciado. De toda a sorte a primeira oração “salvo na hipótese
de o pedido da ação limitar-se expressamente ao reconhecimento de
verbas de natureza exclusivamente indenizatória” traz o ponto que
vem gerando mais controvérsia e pauta as interpretações que tendem
a não viabilizar a formulação de acordos com verbas exclusivamente
indenizatórias.
O texto acima estaria
excluindo da aplicação do disposto na nova norma apenas ações que
tivessem exclusivamente pedidos indenizatórios como no caso de uma
ação na qual apenas é pedido a condenação da reclamada ao
pagamento de indenização por danos morais, situação rara na
Justiça do Trabalho que em sua imensa maioria possui ações com
inúmeros pedidos.
Entretanto, na sequência da
redação identificamos que a primeira oração parece dispensável:
“a parcela referente às verbas de natureza remuneratória não
poderá ter como base de cálculo valor inferior”. Ora, se o
dispositivo trata apenas de verbas de caráter remuneratório
naturalmente aquelas ações que contenham o pedido de condenação
ao pagamento de verbas exclusivamente indenizatórias não seriam
abrangidas pelo texto.
Cremos que as interpretações
no sentido de que está vedada homologação de acordo com a
discriminação de verbas exclusivamente indenizatórias, mesmos nas
ações que tenham as duas espécies de pedidos (indenizatórios e
remuneratórios) tem base principalmente no brocardo “a lei não
tem palavras inúteis”, pois como visto, a primeira parte do
parágrafo “3º A” se mostrou inócua.
Os incisos trazem as bases
para os cálculos, vejamos: “I - ao salário-mínimo, para as
competências que integram o vínculo empregatício reconhecido na
decisão cognitiva ou homologatória.”. A decisão judicial é
proferida mediante provocação e se limita ao pedido realizado,
deste modo em uma ação na qual se pede a condenação da reclamada
ao pagamento de horas extras e equiparação salarial não existe o
reconhecimento do vínculo empregatício na decisão, este já é
reconhecido, não há controvérsia e portanto não existe interesse
jurídico.
Deste modo, em que pese o
devido respeito a entendimentos contrários o inciso I
gramaticalmente se aplicaria somente às ações que pleiteassem o
reconhecimento de vínculo empregatício.
Quanto ao inciso II que tem a
seguinte redação: “II - à diferença entre a remuneração
reconhecida como devida na decisão cognitiva ou homologatória e a
efetivamente paga pelo empregador, cujo valor total referente a cada
competência não será inferior ao salário-mínimo.” Podemos
realizar as mesmas observações referentes ao inciso I, pois
novamente trata de um “reconhecimento judicial”, ou seja, alguma
divergência levada ao judiciário e devidamente reconhecida, como na
hipótese de pedido de diferenças salariais decorrentes de
equiparação salarial, ou no tocante ao piso da categoria. Teremos
mais uma vez aplicação somente a ações com pedidos específicos.
Cabe ainda ressaltar que nos
dois incisos acima existe o termo “reconhecido”. Este vocábulo é
perfeitamente aplicável as sentenças condenatórias, todavia no
acordo ainda resta a “res dubia”, não houve
reconhecimento de nada e não identificamos impedimento para em uma
ação na qual se pleiteia horas extras e danos morais a reclamada
reconheça para fins de acordo apenas os danos morais e o autor abra
mão do pedido de horas extras, atribuindo quitação total à
demanda, inexistindo a obrigatoriedade de continuar o litígio quanto
ao restante.
A mesma situação pode ser
identificada em uma sentença referente ao mesmo exemplo acima. Ou
seja, o reclamante pediu a condenação da reclamada ao pagamento de
horas extras e dano moral, sendo que somente o pedido de indenização
por danos morais foi julgado procedente. Neste caso não há dúvida
de que não há necessidade de proporcionalidade, pois somente o dano
moral foi “reconhecido” como consta nos dispositivos.
O parágrafo “3º B”
apenas complementa o inciso I do parágrafo 3º A e se mostra mais
claro em sua aplicação, pois se existir salário normativo este
deverá ser aplicado como base de cálculo ao invés do salário
mínimo.
Cremos que aplicando a
interpretação gramatical, preferida pelos conservadores e liberais
(em sentido econômico), é mantida a possibilidade de homologação
de acordos com verbas exclusivamente indenizatórias antes da
sentença de primeiro grau.
No tocante à interpretação
histórica, se mostra válida a análise da justificativa da Senadora
pelo PSL do Mato Grosso do Sul Soraya Thronicke responsável pela
Emenda 2 no PL 2.999/2019 que deu origem às alterações no art. 832
pela Lei 13.867/2019 (acessível em
https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7981807&disposition=inline
):
“Atualmente, no âmbito da
Justiça do Trabalho, embora o §3º do art. 832 da CLT determine a
discriminação da natureza jurídica das parcelas remuneratórias
constantes da condenação ou do acordo homologado em juízo, o que
se verifica na prática conciliatória é a atribuição de natureza
jurídica indenizatória da maior parte das verbas, mesmo aquelas de
natureza tipicamente remuneratória, o que resulta na impossibilidade
de arrecadação de imposto de renda e contribuição
previdenciárias. Considerando o valor de R$ 13 bilhões pagos nas
Justiça do Trabalho a título de acordos judiciais, no ano de 2018,
e assumindo a estimativa conservadora de que 50% dessas verbas foram
discriminadas como de natureza indenizatória, quando na realidade
possuíam natureza remuneratória, encontra-se o valor de R$ 6,5
bilhões sobre os quais não houve incidência do imposto de renda e
contribuições sociais. Com efeito, considerando as alíquotas
aplicáveis a cada espécie, alteração ora proposta tem o potencial
de gerar receita adicional de R$ 1,95 bilhão por ano, o que
representa aumento de receita da ordem de R$ 19,5 bilhões em 10
anos. (grifos nossos)”
Conforme justificativa para a
inserção da norma, o que se buscou vedar foi a atribuição de
natureza indenizatória às verbas remuneratórias. Quanto a este
argumento vale também a interpretação sistemática do ordenamento
jurídico, pois com o texto do art. 841, parágrafo 1º da CLT este
aspecto já havia sido regulado:
§ 1o Sendo escrita, a
reclamação deverá conter a designação do juízo, a qualificação
das partes, a breve exposição dos fatos de que resulte o dissídio,
o pedido, que deverá ser certo, determinado e com indicação de seu
valor, a data e a assinatura do reclamante ou de seu representante.
Diante da obrigatoriedade de
indicação do valor estimado do pedido na peça inicial, resta
vedada a composição sobre determinada verba em valor superior ao
pleiteado. É fato que existe posicionamento no sentido de que os
valores dependem de liquidação, mas em uma fase anterior à
liquidação o parâmetro para o cálculo seria aquele indicado na
petição inicial.
A título de ilustração,
supondo que o reclamante tenha pleiteado R$ 12.000,00 a título de
horas extras e R$ 2.000,00 a título de danos morais. Sendo
entabulado um acordo de R$ 4.000,00 seria temerário discriminar todo
o valor como indenizatório. Cremos que os novos parágrafos
inseridos no art. 832 da CLT com a análise da vontade do legislador
apenas reforçam tal entendimento.
Retornando à argumentação
de coerência e de coesão de Neil MarcCormick consideramos que os
parágrafos 3º A e 3º B também suprem lacuna interpretativa
deixada pela Orientação Jurisprudencial nº 376 da SBDI-I do C. TST
quanto a necessidade de proporcionalidade entre as verbas de caráter
indenizatório e salarial de decisão judicial ainda não transitada
em julgado, sendo que a partir de agora deverá ser respeitada nos
acordos homologados antes do trânsito em julgado.
Segue abaixo o texto da OJ 376
da SDI-I do C.TST
OJ-SDI1-376 CONTRIBUIÇÃO
PREVIDENCIÁRIA. ACORDO HOMOLOGADO EM JUÍZO APÓS O TRÂNSITO EM
JUL-GADO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. INCIDÊNCIA SOBRE O VALOR
HOMOLOGADO (DEJT divulgado em 19, 20 e 22.04.2010) É devida a
contribuição previdenciária sobre o valor do acordo celebrado e
homologado após o trânsito em julgado de decisão judicial,
respeitada a proporcionalidade de valores entre as parcelas de
natureza salarial e indenizatória deferidas na decisão condenatória
e as parcelas objeto do acordo.
Ademais, não houve revogação
do art. 515, §2º do CPC:
§ 2º A autocomposição
judicial pode envolver sujeito estranho ao processo e versar sobre
relação jurídica que não tenha sido deduzida em juízo.
Referido dispositivo supre
lacuna normativa da CLT podendo ser aplicado em conformidade com o
art. 15 do CPC.
Poderíamos tratar de outras
teorias argumentativas com viés constitucional como de Robert Alexy
ou as teorias argumentativas de Gadamer e Heidegger, porém nosso
intuito é mais prático e não visamos uma interpretação
inovadora, pós positivista ou neoconstitucionalista, nem ao menos
resvalar no ativismo judicial, ressaltamos apenas a busca de
coerência e coesão através inclusive de métodos clássicos de
interpretação sem grande carga de fundamentação principiológica.
Indicamos ainda artigo do
Professor e Juiz do Trabalho Roberto Dala Barba Filho que traz outras
importantes considerações a respeito do tema disponível em
https://jus.com.br/artigos/76751/acordo-judicial-trabalhista-apos-a-lei-13-876-2019
.
Em suma com o devido respeito
a posicionamentos em sentido diverso e considerando a complexidade do
tema e ainda o curto tempo de vigência da norma, entendemos que
ainda é válida a homologação de acordo com a discriminação de
verbas exclusivamente indenizatórias mesmo nas ações que tenham
verbas indenizatórias e remuneratórias conforme argumentação
gramatical, histórica e sistemática acima.
Entendemos que a nova norma
restringiu a possibilidade a discriminação de verbas nos acordos em
valores superiores àqueles indicados na petição inicial, bem como
esclareceu que no caso de decisão ainda que não transitada em
julgado a fixação das verbas de natureza indenizatória e salarial
deve ser proporcional àquela fixada na decisão existente.
*
Texto de autoria de Glauco Bresciani Silva - Juiz do Trabalho do TRT
da 2ª Região. Especialista em Filosofia do Direito pela PUC/MG.
Harvard University Certificate in Course Justice. Palestrante da
Escola Judicial do TRT da 2ª Região. Professor de cursos
preparatórios para concursos públicos, Exame da OAB e
pós-graduação. Colaborador do site
http://www.direitoteoriaepratica.com.br.
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