Do não cabimento da Querela Nullitatis na Justiça do Trabalho
Para
muitos pensadores do Direito, os atos jurídicos em geral, incluindo
os atos processuais, situam-se em três planos: o da existência, o
da validade e o da eficácia. Pontes de Miranda foi um dos
precursores da tese desenvolvida inicialmente para o direito privado,
mas que foi transposta para os demais ramos da ciência jurídica.
Essa
formulação é muito importante para a teoria da invalidade dos
negócios jurídicos. Alguns atos ou fatos apresentam vício de
tamanha gravidade que, por isso, são considerados inexistentes. O
exemplo clássico é, no direito processual, é o da sentença
proferida por quem não é juiz.
Outros
atos apresentam “defeitos” menos graves que, apesar de não
afetarem sua existência perante o Direito, comprometem a validade do
ato. A doutrina, tendo em consideração o plano da validade, aponta
vícios de pelo menos duas espécies: i) nulidade absoluta, que
transborda o interesse das pessoas diretamente envolvidas e, por
isso, não comportam convalidação; e ii) nulidade relativa,
concernentes ao interesse disponível das partes e, por essa razão,
passíveis de convalidação.
A
eficácia dos atos jurídicos diz respeito a sua aptidão para
produzir efeitos. Os atos inválidos, por exemplo, produzem efeitos
até (e se) que reconhecidos como tais.
A
teoria geral do processo elenca os chamados pressupostos processuais,
que podem ser classificados de várias maneiras. De acordo com José
Roberto dos Santos Bedaque¹:
No
Brasil, todavia, predomina a denominada “corrente ampliativa”. Os
pressupostos processuais seriam os requisitos de existência e
desenvolvimento válido e regular do processo. Dividem-se em
subjetivos e objetivos. Os primeiros referem-se ao juiz (investidura,
competência e imparcialidade) e às partes (capacidade de ser parte,
capacidade de estar em juízo e capacidade postulatória). Os
objetivos dizem respeito aos atos do processo (petição inicial
apta, citação válida e regularidade do procedimento). Alguns
acrescentam a esse rol os pressupostos negativos, ou seja, fenômenos
cuja ocorrência impede o desenvolvimento do processo (litispendência
e coisa julgada).
São
pressupostos processuais de existência: i) demanda; ii) jurisdição;
e iii) citação.
Já
os pressupostos processuais de validade positivos são os seguintes:
i) capacidade de ser parte; ii) capacidade de estar em juízo; iii)
capacidade postulatória; iv) petição inicial apta; v) citação
válida; vi) competência do juízo; v) imparcialidade do juízo.
De
outro giro, constituem pressupostos processuais negativos a
inexistência de litispendência, coisa julgada, perempção e
compromisso arbitral.
Entrementes,
para Bedaque, “...
o único requisito de existência do processo, sem o qual a sentença
é mero fato, destituído de efeito jurídico, é a jurisdição,
isto é, a presença de um juiz, regularmente investido dessa
função”.
Como
é cediço, a citação é ato pela qual o réu, ou seja, aquele em
face de quem é formulada um demanda, é cientificado da sua
existência para, querendo, se defender (art. 213 do CPC).
Se
se considerar a citação uma pressuposto processual de existência,
a sua não formalização implicará a conclusão de que a sentença
proferida em processo em que não houve citação é inexistente. É
justamente esse o fundamento da chamada querela
nullitatis insanabilis.
Trata-se
de uma ação declaratória de inexistência de sentença,
objetivando extirpar seus efeitos a qualquer tempo, sob a alegação
de que não houve citação, ato essencial à formação da relação
processual. Como se sabe, as ações puramente declaratórias não se
sujeitam a prazo prescricional ou decadencial, sendo essa a grande
vantagem da medida frente à ação rescisória.
Nesse
sentido, é a orientação de Adriano Pedra¹:
Dessa
forma, o controle de tais nulidades processuais poderá ser feito no
curso do próprio processo, a requerimento das partes ou de ofício
pelo juiz, ou ainda, visando ao afastamento do ordenamento jurídico
de decisões injustas, o controle de nulidades processuais também
poderá ser feito com o processo findo, com sentença transitada em
julgado. Nesse
segundo caso, como temos um vício de inexistência, a ação
declaratória de inexistência é meio de impugnação cabível,
podendo ser interposta mesmo após dois anos, e ainda fora das
hipóteses taxativas do artigo 485 do Código de Processo Civil, que
se refere à ação rescisória. Também podem ser reconhecidos tais
vícios através da querella nulitatis insanable, conforme o caso, de
competência do juízo de primeiro grau, uma vez que não se está
diante de revogação dos efeitos da coisa julgada, como na ação
rescisória, mas sim visando ao reconhecimento de que a relação
jurídica processual e a sentença jamais existiram.
(g.n.)
O
Superior Tribunal de Justiça admite a ação declaratória de
inexistência (querela
nullitatis) em casos
excepcionais, quando presentes os chamados vícios transrescisórios,
senão vejamos:
AGRAVO
REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS. BASE DE CÁLCULO. INOBSERVÂNCIA DO ART. 20, § 3º,
DO CPC. TRÂNSITO EM JULGADO. VÍCIO DE NATUREZA RESCISÓRIA.
DESCABIMENTO DA QUERELA NULLITATIS. ERRO MATERIAL. NÃO CONFIGURAÇÃO.
COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL. DESCARACTERIZAÇÃO.
1.
É possível, de modo excepcional, o controle de nulidades
processuais, sobretudo as de natureza absoluta, após o trânsito em
julgado da decisão por meio de impugnações autônomas, como
embargos à execução, ação anulatória (querela nullitatis) e
ação rescisória, cabíveis conforme o grau de nulidade no processo
originário.
2.
A querela nullitatis é instrumento utilizado para impugnar sentença
contaminada pelos vícios mais graves de erros de atividade (errores
in procedendo), nominados de vícios transrescisórios, que tornam o
ato judicial inexistente, não se sanando com o transcurso do tempo.
3.
Se a insurgência é contra a parte da sentença que fixou a base de
cálculo dos honorários advocatícios sem observar os ditames do
art. 20, § 3º, do CPC, o vício é de caráter rescisório, de modo
que o instrumento processual adequado é a ação rescisória, apta a
discutir a existência de violação literal de dispositivo de lei.
4.
O equívoco no arbitramento da verba honorária não é considerado
erro material, pois somente os desacertos numéricos cometidos quando
da elaboração da conta caracterizam esse vício. Logo, os critérios
de cálculo utilizados quanto aos honorários advocatícios estão
protegidos pela coisa julgada. A ausência de impugnação tempestiva
da base de cálculo fixada atrai a aplicação do brocardo jurídico
dormientibus non sucurrit jus (o direito não socorre aos que
dormem). Precedentes.
5.
Não havendo vício transrescisório ou eventual coisa julgada
inconstitucional, mas vício rescisório, descabida é a querela
nullitatis.
(AgRg
no REsp 1524632/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA,
TERCEIRA TURMA, julgado em 03/09/2015, DJe 11/09/2015) - g.n.
DIREITO
PROCESSUAL CIVIL. NULIDADE DA CITAÇÃO EM AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE
OBRA NOVA. QUERELA NULLITATIS INSANABILIS. CABIMENTO.
1.
A ausência de citação não convalesce com a prolação de sentença
e nem mesmo com o trânsito em julgado, devendo ser impugnada
mediante ação ordinária de declaração de nulidade. A hipótese
não se enquadra no rol exaustivo do art. 485 do Código de Processo
Civil, que regula o cabimento da ação rescisória.
2.
Recurso especial a que se dá provimento.
(REsp
1333887/MG, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA,
julgado em 25/11/2014, DJe 12/12/2014)
A
jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho é pacífica quanto
a não admissibilidade da querela
nullitatis,
entendendo que a sentença transitada em julgado somente pode ser
atacada mediante ação rescisória, dentro do biênio legal,
conforme demonstram os seguintes julgados:
AGRAVO
DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. AÇÃO ANULATÓRIA. QUERELA
NULLITATIS. CITAÇÃO INVÁLIDA. CARÊNCIA DE AÇÃO. DECISÃO
JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. A Súmula
nº 412 do c. TST dispõe sobre a possibilidade de se discutir,
através de ação rescisória, questão processual atinente a
pressuposto de validade de decisão de mérito, como na presente
hipótese, onde se pretende declaração da nulidade de citação.
Nessa mesma esteira, esta Corte Superior tem reiteradamente concluído
pela impossibilidade jurídica de se acolher ação anulatória
contra decisão judicial já transitada em julgado. A ação
anulatória prevista no art. 486 do CPC se destina a anular atos
praticados no curso do processo pelas partes envolvendo relação de
direito material e que não dependam de sentença ou quando esta for
meramente homologatória. As decisões de mérito transitadas em
julgado devem ser desconstituídas por meio da cabível ação
rescisória, nas hipóteses taxativamente previstas no art. 485 do
digesto processual, inclusive quando estiver em debate questão
processual classificada como pressuposto de validade. Logo, a ação
anulatória é inadequada para a desconstituição de decisão de
mérito transitada em julgado, sendo a ação rescisória o único
meio processual cabível para tanto. Precedentes. Agravo de
Instrumento a que se nega provimento.
(AIRR
- 152600-73.2012.5.21.0002 , Relator Desembargador Convocado: Américo
Bedê Freire, Data de Julgamento: 19/11/2014, 6ª Turma, Data de
Publicação: DEJT 21/11/2014)
RECURSO
DE REVISTA. AÇÃO ANULATÓRIA. QUERELA NULLITATIS. CITAÇÃO
INVÁLIDA. CARÊNCIA DE AÇÃO. DECISÃO JUDICIAL NÃO TRANSITADA EM
JULGADO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. No caso em tela, trata-se de
ação anulatória de decisão ainda não transitada em julgado. A
jurisprudência desta Corte pacificou o entendimento de ser incabível
ação anulatória ou ação declaratória com o objetivo de
desconstituir sentença judicial, ainda que transitada em julgado,
porque atacável apenas mediante ação rescisória. Assim sendo, a
ação anulatória é inadequada para a desconstituição de decisão
de mérito. Por outro lado, caso já tenha ocorrido o trânsito em
julgado, seria a ação rescisória o único meio processual cabível
para tanto. Precedentes. Recurso de revista não conhecido.
(RR
- 2022-76.2013.5.08.0115 , Relator Ministro: Emmanoel Pereira, Data
de Julgamento: 05/08/2015, 5ª Turma, Data de Publicação: DEJT
14/08/2015)
A
questão que se coloca é a seguinte: existe alguma peculiaridade no
processo do trabalho capaz de estabelecer essa diferença com o processo civil? Ao
menos do ponto de vista legal não, uma vez que a ação rescisória
não é disciplinada com especificidades na CLT, conforme se infere
do seu art. 836, verbis:
Art.
836. É vedado aos órgãos da Justiça do Trabalho conhecer de
questões já decididas, excetuados os casos expressamente previstos
neste Título e a ação rescisória, que será admitida na forma do
disposto no Capítulo IV do Título IX da Lei no 5.869, de 11 de
janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, sujeita ao depósito
prévio de 20% (vinte por cento) do valor da causa, salvo prova de
miserabilidade jurídica do autor. (Redação dada pela Lei nº
11.495, de 2007)
Também
no CPC existe disposição semelhante quanto a preclusão e a coisa
julgada, conforme exsurge da letra dos arts. 471 e 473:
I
- se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio
modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a
parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;
Art.
473. É defeso à parte discutir, no curso do processo, as questões
já decididas, a cujo respeito se operou a preclusão.
Anote-se,
por oportuno, que esses dispositivos foram reproduzidos praticamente
com a mesma redação no Novo Código de Processo Civil, em seus
arts. 505 e 507, in
litteris:
Art.
505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas
relativas à mesma lide, salvo:
I
- se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado,
sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que
poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;
Art.
507. É vedado à parte discutir no curso do processo as questões já
decididas a cujo respeito se operou a preclusão.
Pelo
que se observa, a CLT faz remissão ao Código de Processo Civil
quanto às hipóteses de cabimento e demais aspectos da ação
rescisória. Isso significa que, a partir da interpretação dos
mesmos dispositivos legais, o STJ e o TST chegaram a conclusões
diferentes quanto ao cabimento da querela.
Acreditamos
que o motivo dessa discrepância resida nos princípios especiais que
regem o direito processual do trabalho. O entendimento restritivo da
Justiça Trabalhista resulta do princípio do princípio
do protecionismo temperado ao trabalhador,
assim definido por Mauro Schiavi³: “... não
é próprio do Direito Material do Trabalho, mas sim para facilitar
seu acesso à Justiça e a uma ordem jurídica justa”.
Afinal
de contas, 99% das demandas em trâmite na Justiça do Trabalho têm
no pólo ativo o trabalhador e no pólo passivo o empregador. A
rejeição da querela
é uma forma de
conferir maior garantia ao trabalhador que, após a fluência do
prazo de dois anos da sentença que lhe for favorável, não se verá
ameaçado quanto a imutabilidade daquele direito reconhecido.
²
Processo e pressupostos processuais. Disponível em:
<www.agu.gov.br/page/download/index/id/523907>.
Data da consulta: 22/02/2016.
³
Manual de Direito Processo do Trabalho. 2ª ed. São Paulo: LTr,
2009, p. 90.
* Esta postagem é de autoria do colaborador Dr. Rafael Carvalho da Rocha Lima
Caro Doutor Rafael,
ResponderExcluirParabéns pelo excelente texto. Rico em detalhes conceituais, com colação de decisões atuais das Cortes Superiores.
E, sobre a temática, deixo o registro de dois precedentes do C. TST (SBDI) constante dos informativos, para maior reflexão de todos:
Segundo precedente da SBDI-1/TST, rel. Min Guilherme Augusto Caputo Bastos, a pretensão de desconstituição de sentença homologatória de cálculos de liquidação apresentados pelo perito é incompatível com a ação anulatória, a qual, consoante o art. 486 do CPC, é cabível apenas contra os atos dispositivos praticados pelas partes, que não dependam de sentença, ou contra os atos processuais objeto de decisão meramente homologatória. Assim, tendo em conta que os cálculos apresentados por perito contábil não se caracterizam como atos dispositivos em que há declaração de vontade destinada a dispor da tutela jurisdicional, e que a sentença homologatória de cálculos de liquidação não se destina a jurisdicionalizar ato processual das partes, mas tornar líquida a prestação reconhecida na sentença exequenda, integrando-a, não há falar em cabimento da ação anulatória (Informativo Execução 13).
Segundo precedente da SBDI-2/TST, rel. Min. Maria de Assis Calsing, em face do disposto no art. 486 do CPC, é incabível ação anulatória quando se pretende a redução do valor da multa (astreintes) fixada em acórdão prolatado em agravo de petição. Na espécie, a decisão que se pretendia anular não se enquadrava na hipótese de ato judicial que não dependa de sentença ou em que esta era meramente declaratória, mas hipótese em que o julgador formulou juízo de valor sobre a questão (Informativo 15).
Prezado Dr. Ricardo,
ExcluirObrigado por sua valiosa contribuição. Os precedentes que você trouxe são muito importantes e pertinentes.
Professor, gostaria de tirar uma dúvida: a competência pra analisar a querella é do próprio juizo que proferiu a decisão, né isso?
ExcluirPrezado professor, creio que para tudo deve-se ter uma exceção, recentemente veio as minhas mãos um caso onde houve clara má-fé (assim entendo) tanto do colega advogado da parte reclamante, como do próprio reclamante ao indicar um endereço alheio a da parte reclamada (a reclamada era um curso de informática e a citação se deu em uma lotérica que não era de propriedade de nenhum sócio desse curso, como depois na fase de execução o oficial avaliador expõe e, ainda, alega que nenhum dos vizinhos nunca nem ouviram falar no curso ou nos sócios) e por incrível que pareça nessa lotérica alguém assinou (com discrepância terrível) como se a sócia do curso de informática fosse.
ExcluirObs1.: essa ação transitou em julgado em 2004 e só agora final do ano passado (2016) a sócia ficou sabendo dessa ação ao ter sua conta congelada, assim sendo acabou o prazo da Rescisória.
Obs2.: a parte reclamante nos autos alega descaradamente desconhecer o endereço da reclamada, todavia, em nenhum momento pediu a citação no local de trabalho da empregada, tão pouco no endereço da matriz do curso de informática, o qual constava nas folhas de pontos anexadas aos autos pela reclamante para comprovar horas extras.
Prezado Dr. Antonio, e o que o senhor fez?? Ingressou com ação rescisório ou anulatória??
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