Princípio da boa-fé
Após
os influxos de constitucionalização do Código Civil, consistente
no reconhecimento da norma constitucional como o seu fundamento de validade, foi verificada a incompatibilidade do Código Civil de
1916 com a Constituição Federal de 1988, o que culminou no
advento do Código Civil de 2002.
A
atual codificação privada trouxe consigo os valores da eticidade,
socialidade e operabilidade, traduzindo, em epítome, uma
maior preocupação com o “ser” (tutela do indivíduo/pessoa) do
que com o “ter” (direito civil patrimonialista e individualista)
– repersonalização do direito civil. A referida mudança pode ser
constatada com o uso das cláusulas gerais, bem como a positivação
da função social do contrato e da boa-fé.
A
boa-fé se traduz em um princípio de substrato moral, que ganhou
contornos e matiz de natureza jurídica cogente. Subdivide-se em
boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva.
A
boa-fé subjetiva, também chamada de boa-fé crença, consiste em uma situação psicológica, um estado
de ânimo ou de espírito do agente que realiza determinado ato ou
vivencia dada situação, sem ter ciência do vício que a inquina.
A
boa-fé objetiva, por seu turno, cláusula geral de natureza
principiológica (standard ético-jurídico), delineada em um conceito jurídico indeterminado, significa um roteiro de lealdade a ser seguido nos negócios jurídicos. Encontra-se prevista no art. 422 do Código
Civil, presente, como cláusula implícita, em qualquer relação
contratual pactuada.
Nesse
diapasão, cumpre frisar que a doutrina destaca as seguintes funções
da boa-fé objetiva:
a)
Função interpretativa e de colmatação, que orienta a atuação
interpretativa do juiz, a fim de que extraia da norma, objeto de sua
investigação, o sentido moralmente mais recomendável e socialmente
mais útil.
b)
Função criadora de deveres jurídicos anexos ou de proteção. A
título de ilustração, os deveres mais conhecidos são: lealdade e
confiança recíprocas, assistência, informação e sigilo ou
confidencialidade.
c)
Função delimitadora do exercício de direitos subjetivos, uma vez
que aquele que contraria a boa-fé objetiva comete abuso de direito,
nos termos do art. 187 do Código Civil.
Compreendida
a noção da boa-fé objetiva em matéria contratual, a sua aplicação
pragmática gera importantes efeitos, nos mais diferentes campos.
Estamos diante das figuras parcelares, também chamadas de função
reativa ou de subprincípios da boa-fé objetiva, advindas do direito
comparado. Sem pretensão de esgotar o assunto, destacam-se os
seguintes desdobramentos do princípio da boa-fé objetiva.
A
primeira repercussão é o “venire contra factum proprium”, que
reside na consagração da vedação do comportamento contraditório.
Parte-se da premissa de que os contratantes, por consequência lógica
da confiança depositada, devem agir de forma coerente, segundo a
expectativa gerada por seus comportamentos. A propósito, artigos
973, 330 e 175, todos do Código Civil.
Cite-se,
ainda, a “supressio” e a “surrectio”, faces da mesma moeda. A
“supressio” traduz a perda de um direito em face do seu não
exercício, consolidando situação favorável à outra parte, que
adquire direito correspondente via “surrectio”. Sua aplicação
também pode se dar na seara laboral, consoante se extrai dos
seguintes exemplos: perdão tácito que ocorre em falta grave
praticada pelo empregado e o pagamento constante de uma gratificação
sem previsão no contrato, não podendo o empregador, posteriormente,
deixar de pagar.
Outra
hipótese é o “tu quoque”, que tem como objetivo evitar que uma
das partes da relação negocial surpreenda a outra, causando-lhe
prejuízo. Tem como exemplo a exceção do contrato não cumprido,
com previsão nos arts. 476 e 477 do Código Civil.
Como
último desdobramento, destaca-se a “exceptio doli”, que visa a
sancionar condutas em que o exercício do direito tenha sido
realizado com o intuito, não de preservar legítimos interesses,
mas, sim, de prejudicar a parta contrária. Tem aplicação prática
no art. 940 do CC.
Por
fim, o negócio jurídico deve ser analisado sob uma perspectiva
tríplice, conhecida como “escada ponteana”, devendo ser
observados os planos da existência, validade e eficácia. Frise-se
que a boa-fé encontra-se na esfera da validade, mais especificamente
na manifestação da vontade, a qual deve ser livre e de boa-fé, sob
pena de invalidade do negócio jurídico e responsabilização do
agente, nos termos do art. 187 do Código Civil.
0 comentários:
Postar um comentário